Caetano em Paz com os Críticos: A Reviravolta de Cinema Transcendental
Análise do álbum que marcou a virada de Caetano Veloso nos anos 70: da resistência da crítica às canções atemporais, passando pelo tributo secreto a Torquato Neto em 'Cajuína'.
Em novembro de 1979, Caetano Veloso lançou Cinema Transcendental, seu segundo álbum com a Outra Banda da Terra. Mais do que um novo trabalho de estúdio, o disco marcou um ponto de virada na relação entre o artista e a crítica especializada, que vinha encarando com ressalvas suas investidas mais experimentais nos anos anteriores.
Do ceticismo à aceitação
Muito (1978) foi amplamente ignorado pela imprensa, enquanto Bicho (1977), embora hoje celebrado como um clássico, foi recebido à época com desconfiança. Setores da crítica rotularam o álbum como "alienado", num momento em que se esperava dos artistas uma postura mais abertamente combativa frente à ditadura militar. Canções como “O Leãozinho” e “Tigresa” evidenciavam um Caetano mais lírico, introspectivo e sensual, traços vistos por parte da crítica como distanciamento político.
A virada musical
Cinema Transcendental reverteu esse cenário. O álbum realizou o raro feito de conciliar sofisticação artística e apelo popular, apresentando uma sonoridade elegante, sustentada pela excelência da Outra Banda da Terra, e um repertório mais imediato e comunicativo. Logo na faixa de abertura, “Lua de São Jorge”, o violão em afinação aberta e a letra que flutua entre o prosaico e o espiritual sinalizavam um novo momento criativo.
Outras canções reafirmavam esse equilíbrio. “Menino do Rio”, composta para Baby do Brasil e imortalizada como tema da novela Água Viva, trazia uma vibração solar e urbana, enquanto “Oração ao Tempo” e “Vampiro” mostravam como a contenção instrumental podia resultar em intensidade emocional. Homenagens à cultura negra atravessavam o disco, como em “Badauê”, inspirada no afoxé de Moa do Katendê, e em “Beleza Pura”, com o verso: “moço lindo do Badauê”.
O que Cinema Transcendental revelou foi um artista em plena maturidade criativa. Caetano continuava fiel às suas ousadias estéticas, mas agora as apresentava em linguagem mais acessível, sem abrir mão da complexidade. Pela primeira vez em anos, a crítica parecia compreender que sua abordagem sensorial e poética também constituía uma forma de resistência — mais sutil, mas não menos política.
A capa que virou símbolo
A capa do disco, assim como sua música, é carregada de sugestão e mistério. Nela, vemos Caetano de costas, diante de um céu azul e do mar, com um objeto alongado, apontado para o horizonte. A imagem, hoje icônica, surgiu de maneira quase acidental e chegou a ser rejeitada por amigos próximos ao artista.
“Eu não quero que as pessoas me vejam. Quero que elas vejam as coisas lindas que eu ando vendo”, declarou Caetano à Folha de S.Paulo, na época do lançamento. A fotografia foi redescoberta por acaso. “Quando ela apareceu, eu tinha terminado de fazer o disco e pensava em botar o nome de Cinema Transcendental. Aí eu disse: ‘Ah, bom! Vai ser mesmo Cinema Transcendental e a capa vai ser essa. Tinha de ser!’”, contou o cantor à Revista Música em 1981.
Cajuína: a canção que transformou o luto em arte
Quando Caetano Veloso incluiu "Cajuína" no álbum, poucos imaginavam que aquela melodia suave de xote escondia uma das histórias mais emocionantes da música brasileira. O que parecia uma simples canção sobre o Nordeste revelava-se, na verdade, um delicado tributo a Torquato Neto, poeta tropicalista que se suicidou em 1972, e um retrato do encontro entre Caetano e o pai do amigo morto.
O encontro que inspirou a canção
O episódio que inspirou a música aconteceu anos após a morte de Torquato. Caetano estava em Teresina, capital do Piauí, terra natal do poeta, quando foi visitado no hotel por Dr. Heli, pai de Torquato e renomado defensor público. Naquele momento, diante do homem que perdera o filho, Caetano finalmente chorou a morte do amigo, uma dor que até então não havia sido completamente processada.
Dr. Heli, em um gesto de impressionante generosidade, convidou Caetano para ir à sua casa. Lá, serviu-lhe cajuína, um suco de caju clarificado típico da região, e colheu uma "rosa menina" do jardim para presentear o cantor. Esses dois elementos, aparentemente simples, tornaram-se o cerne de uma das canções mais profundas do repertório de Caetano.
A letra de "Cajuína" é curta, mas densa. Começa com um questionamento existencial: "Existirmos: a que será que se destina?", verso que sintetiza a perplexidade diante da morte precoce de Torquato. Os versos seguintes falam da rosa recebida e da percepção de que Dr. Heli era um "homem lindo", capaz de oferecer consolo mesmo em sua própria dor.
O final da canção: "Apenas a matéria vida era tão fina/E éramos olharmo-nos intacta retina/A cajuína cristalina em Teresina", mostra como Caetano transformou a experiência em arte. A "cajuína cristalina" funciona como metáfora perfeita: assim como o suco é clarificado no processo de fabricação, a dor foi purificada e transformada em poesia.
Por anos, muitos ouvintes interpretaram "Cajuína" como uma canção de amor ou uma simples evocação do Nordeste. Só mais tarde ficou claro que se tratava de um dos tributos mais comoventes já feitos a Torquato Neto - sem mencionar seu nome, mas capturando com sensibilidade ímpar o vazio deixado por sua partida.
Mais do que uma bela canção, "Cajuína" é um testemunho do poder transformador da arte. Caetano levou sete anos para processar aquele encontro com Dr. Heli e transformá-lo em música. O resultado foi uma obra que, em sua aparente simplicidade, fala sobre luto, amizade e a fragilidade da vida com uma rara profundidade.
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